Tem sido crescente o esforço
do Poder Judiciário para não alimentar a indústria do dano moral. Criado pelo
Código Civil de 2016 e consolidado, mais tarde, pela Constituição Federal de
1988, pelo Código de Defesa do Consumidor e pelo novo Código Civil de 2002, o
instrumento prevê indenizações para sofrimentos de ordem pessoal. E é
justamente a natureza abrangente e subjetiva do instituto que tem provocado a
avalanche de processos de reparação nos tribunais brasileiros.
No Superior
Tribunal de Justiça, são comuns os pedidos sem propósito e que sobrecarregam
uma Justiça em busca de soluções para a crescente quantidade de processos. No
Recurso Especial 1.399.931, de relatoria do ministro aposentado Sidnei Beneti,
o recorrente comprou um tablet pela internet para presentear o filho no Natal.
A mercadoria não foi entregue, e o consumidor ingressou com ação de indenização
por danos morais.
De acordo com
Beneti, a jurisprudência do STJ é categórica: aborrecimentos comuns do dia a
dia, “os meros dissabores normais e próprios do convívio social, não são
suficientes para originar danos morais indenizáveis”. Para ele, a falha na
entrega da mercadoria adquirida pela internet configura, em princípio, “mero
inadimplemento contratual, não dando causa a indenização por danos morais”. O
aborrecimento não trouxe outras consequências, como a frustração de um evento
familiar especial ou a inviabilização da compra de outros presentes de Natal. Com
esse julgamento, a 3ª Turma do STJ, de maneira unânime, decidiu que não são
devidos danos morais ao consumidor que adquire pela internet mercadoria para
presentear e não a recebe conforme esperado.
Na mesma linha
do processo anterior, a 4ª Turma, também de maneira unânime, decidiu que atraso
em voo doméstico inferior a oito horas, sem a ocorrência de consequências
graves, não gera dano moral. A interpretação foi consolidada no julgamento do
Recurso Especial 1.269.246, de relatoria do ministro Luis Felipe Salomão. De
acordo com ele, a verificação do dano moral “não reside exatamente na simples
ocorrência do ilícito”, pois nem todo ato em desacordo com o ordenamento
jurídico possibilita indenização por dano moral. Para ele, o importante é que
“o ato seja capaz de irradiar-se para a esfera da dignidade da pessoa,
ofendendo-a de maneira relevante”. Por isso, Salomão diz que a doutrina e a
jurisprudência têm afirmado de maneira “uníssona” que o mero inadimplemento
contratual não se revela bastante para gerar dano moral. Nesse caso, tanto o
juízo de primeira instância quanto o tribunal local afirmaram que não ficou
demonstrado nenhum prejuízo adicional além do atraso do voo, pois a Gol
Transportes Aéreos forneceu duas opções para os passageiros: estadia em hotel
custeado pela companhia ou viagem de ônibus até o aeroporto de outra cidade, de
onde partiria um voo para o destino pela manhã.
Segundo Salomão,
a doutrina leciona que “só se deve reputar como dano moral a dor, o vexame, o
sofrimento ou mesmo a humilhação que, fugindo à normalidade, interfira
intensamente no comportamento psicológico do indivíduo, chegando a causar-lhe
aflição, angústia e desequilíbrio em seu bem-estar”.
No Recurso
Especial 1.234.549, o então ministro Massami Uyeda (já aposentado), relator do
caso, afirmou que as recentes orientações do STJ caminham no sentido de afastar
indenizações por dano moral na hipótese em que há apenas aborrecimentos aos
quais todos estão sujeitos. Os recorrentes compraram imóvel em um condomínio
residencial pelo valor de R$ 95 mil e, após a mudança, constataram diversos
problemas como infiltrações, vazamentos e imperfeição do acabamento. Tais fatos
geraram danos aos móveis da residência e problemas de saúde no filho dos
proprietários em consequência do mofo. Os recorrentes pleitearam a rescisão
contratual, a devolução do valor pago e a condenação em danos morais no valor
de R$ 20 mil. De acordo com o ministro, os problemas ocorridos no apartamento,
embora tenham causado frustração, por si sós não justificam indenização por
danos morais. Para ele, mesmo que os defeitos de construção tenham sido
constatados pelas instâncias de origem, “tais circunstâncias não tornaram o
imóvel impróprio para o uso”. “A vida em sociedade traduz, em certas ocasiões,
dissabores que, embora lamentáveis, não podem justificar a reparação civil por
dano moral”, afirmou o ministro.
Em outro
julgamento da 4ª Turma, os ministros decidiram que a aquisição de produto
impróprio para o consumo, quando não há ingestão, configura hipótese de mero
dissabor vivenciado pelo consumidor, o que afasta qualquer pretensão
indenizatória. A discussão se deu no julgamento do Recurso Especial 489.325, de
relatoria do ministro Marco Buzzi. A ação foi movida por um consumidor que
comprou uma lata de extrato de tomate com odor e consistência alterados. A lata
de extrato possuía colônias de fungos. O consumidor não ingeriu o produto, mas
pediu indenização por danos morais no valor de R$ 6 mil e a devolução do valor
pago pela lata. Buzzi afirmou que o vício constatado no produto autoriza a
indenização por dano material, correspondente ao valor efetivamente pago.
Entretanto, como não houve ingestão do produto, a condenação do fabricante em
danos morais ficou afastada, “em razão da inexistência de abalo físico ou
psicológico vivenciado pelo consumidor”.
No Recurso
Especial 1.444.573, os ministros da 3ª Turma afastaram o dano moral em ação de
reparação proposta por policial militar que alegou constrangimento ao ficar
travado na porta giratória de uma agência do Banco Santander porque estava
armado.
Em sentido
contrário, no Recuso Especial 1.395.285, de relatoria da ministra Nancy
Andrighi, foi analisada a situação de um consumidor que comprou carro zero
quilômetro fabricado pela Ford com vários problemas. Após apenas seis meses da
aquisição do automóvel, ele apresentou mais de 15 defeitos em componentes
distintos, alguns ligados à segurança, “ultrapassando em muito a expectativa
nutrida pelo recorrido ao adquirir o bem”, afirmou a ministra. Tais defeitos
obrigaram o consumidor a retornar por seis vezes à concessionária para que os
reparos fossem efetuados. Ainda por cima, na última vez, um preposto da
concessionária bateu o carro do cliente. A ação proposta na primeira instância
era de rescisão do negócio, cumulada com restituição dos valores pagos e
indenização por danos morais. O Tribunal de Justiça de São Paulo fixou a
indenização por danos morais em R$ 7,6 mil. Inconformada, a Ford recorreu ao
STJ alegando que os percalços sofridos pelo consumidor caracterizavam apenas
“um inconveniente, um transtorno sem qualquer repercussão no mundo exterior”. De
acordo com a ministra, em regra, eventual defeito em veículo se enquadra no
conceito de simples aborrecimento, incapaz de causar abalo psicológico, “sendo
de se esperar certo grau de tolerância do consumidor na solução do problema
pelo fornecedor”. Entretanto, os ministros da 3ª Turma foram unânimes no
entendimento de que a quantidade de defeitos apresentados pelo veículo
extrapolou o razoável, inclusive porque parte deles estava ligada a problemas
no cinto de segurança, nos discos e pastilhas de freio e na barra de direção:
fatores que, segundo o colegiado, reduzem não apenas a utilidade do bem, mas a
própria segurança do condutor e dos passageiros. Por isso, a Turma considerou
que esses defeitos “causaram ao recorrido frustração, constrangimento e
angústia, superando a esfera do mero dissabor para invadir a seara do efetivo
abalo moral”.
Doutrina
Apesar da
jurisprudência, apenas a análise do caso concreto dirá se o dano moral é
cabível ou não. Isso em razão da natureza do instituto. De acordo com o jurista
Caio Mario da Silva Pereira, o dano moral é “qualquer sofrimento humano que não
é causado por uma perda pecuniária e abrange todo atentado à sua segurança e
tranquilidade, ao seu amor próprio estético, à integridade de sua inteligência,
às suas afeições etc...”.
Já Wilson Melo
da Silva explica que danos morais são lesões sofridas pelo sujeito físico ou
pessoa natural de direito em seu patrimônio ideal, que é o conjunto de tudo
aquilo que não seja suscetível de valor econômico. Por esse entendimento
doutrinário, o dano moral é qualquer dano não patrimonial.
Fonte: Revista Consultor
Jurídico, 08/02/2015.
Título original: Justiça faz
esforço para não alimentar indústria do dano moral.